“Não há artifício para anular crime”, diz Aguinaldo Ribeiro sobre anistia ao caixa dois
Ninguém sabe. Ninguém viu. No dia em que a Câmara decidiu adiar para a próxima semana a votação do projeto das Dez Medidas Contra a Corrupção, quase todos políticos e jornalistas no Congresso Nacional buscavam quem seriam os autores da emenda ao projeto de lei que resultaria na anistia aos crimes correlatos ao caixa dois, que é doação oculta e ilegal de recursos para campanhas eleitorais. Parecia uma operação dos Caça-Fantasmas. Nenhum dos que foram apontados como articuladores das propostas quiseram admitir que o era. Um deles, quando questionado em uma coletiva disparou: “Você acredita na cegonha? Acredita na Branca de Neve? Claro que não tenho nada a ver com isso”.
No plenário da Câmara o clima estava pesadíssimo, um dia depois da divulgação da notícia de que 60 funcionários da Odebrecht estavam em vias de assinar um termo de delação premiada em que denunciariam entre cem e 200 políticos brasileiros no esquema bilionário de desvio de recursos da Petrobras.
Ninguém discursava a favor da anistia ao caixa 2, pelo contrário, as falas todas eram no sentido de elogiar o projeto de iniciativa popular que foi liderado pelo Ministério Público Federal e quer endurecer as regras contra a corrupção. Mas todos sabiam que, a qualquer momento, a emenda, que teve uma versão em papel timbrado, sem nenhuma assinatura, circulando entre jornalistas chegaria para ser votada. O texto dela dizia o seguinte: “Não será punível nas esferas penal, civil e eleitoral, doação contabilizada ou não contabilizada ou não declarada, omitida ou ocultada de bens, valores ou serviços, para financiamento de atividade político-partidária ou eleitoral realizada até a data da publicação desta lei”.
A anistia não estava escrita textualmente, mas, da maneira como foi redigida, alguns consultores legislativos da própria Câmara entenderam que a nova regra poderia gerar interpretações diversas no sentido de perdoar todos os crimes relacionados ao caixa 2, entre eles corrupção, lavagem de dinheiro e peculato. O diabo mora nos detalhes. Boa parte dos investigados pela operação Lava Jato foi denunciada exatamente por esses delitos e, caso a lei passe, estarão livres de algumas dessas punições.
O movimento, intensificado entre a noite de quarta-feira e a manhã quinta-feira, acendeu um sinal de alerta em algumas das proeminentes figuras do Judiciário brasileiro. O juiz federal Sergio Moro, o responsável pela operação Lava Jato na primeira instância, emitiu uma nota na qual dizia que toda anistia era questionável e deveria ser amplamente debatida pela sociedade. “Anistiar condutas de corrupção e de lavagem de impactaria não só as investigações e os processos já julgados no âmbito da operação Lava Jato, mas a integridade e a credibilidade, interna e externa, do Estado de Direito e da democracia com consequências imprevisíveis para o futuro do país”.
Dois procuradores da República que atuam na força-tarefa da Lava Jato também se manifestaram contrários à anistia. Um deles afirmou que essas mudanças devem ter relação com a delação dos funcionários da Odebrecht. “Hoje não é dia de luva de pelica. Hoje é um dia de luva de boxe. Nós não temos mais o que discutir senão fazer os deputados caírem em si”, afirmou o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, durante um evento do MPF em Brasília. O coordenador da força-tarefa, Deltan Dallagnol, usou suas redes sociais para dizer que “retrocessos não podem ser admitidos”. Antes de pressionar pela internet, Dallagnol já havia estado em Brasília em ao menos três ocasiões para conversar com deputados e pedir que eles não destruíssem completamente o projeto original enviado pelo Ministério Público e que teve o apoio de mais de 2 milhões de brasileiros.
Reações parlamentares
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), apontado por adversários como um dos que encabeçavam a emenda da anistia, decidiu adiar a votação para a próxima terça-feira por entender que o clima era desfavorável e que era necessário haver mais debates sobre o assunto. O relator do projeto da Comissão Especial, Onyx Lorenzoni (DEM-RS) comemorou o adiamento. “Estava tudo armado para ser tudo destruído. Mas houve uma articulação do bem para evitar que isso acontecesse”.
Maia foi mais um entre os vários que negaram qualquer possibilidade de se anistiar o caixa dois. “Não há anistia para crime que não existe. O que há aqui é uma confusão. É um jogo de palavras para enfraquecer o Parlamento brasileiro”, afirmou Maia. O presidente da Câmara ainda reclamou, indiretamente, da tentativa de interferência de membros do Ministério Público e do Judiciário na votação desta terça-feira. “Ninguém pode se sentir ofendido por essas decisões, pela soberania da Câmara e do Senado. A gente tem liberdade de votar da forma que a gente quiser. A pressão da sociedade é legítima, contanto que nenhum poder queira subjugar outro poder”.
Líder de um dos partidos envolvidos no acordo de abrandamento das medidas anticorrupção, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) seguiu na mesma linha de Maia. “Foi má abordada essa questão da anistia. Não há artifício para anular um crime e nós não queremos isso”, afirmou.
Como ninguém assumiu, a dúvida sobre os patrocinadores da proposta de anistia permaneceu. Essa foi a segunda vez que tentou-se anistiar o caixa dois. A outra, ocorreu durante a campanha eleitoral deste ano, quando a Câmara estava esvaziada. “É claro que quem está tramando essa proposta, tem vergonha de assumir a sua autoria (…) Aqui no Congresso parece existir fantasmas”, disse o líder da REDE, Alessandro Molon, um dos partidos que ao lado do PSOL apresentaram uma proposta para que toda as votações envolvendo esse tema sejam nominais com a identificação de cada um dos deputados. A primeira tentativa de que isso ocorresse, foi derrubada. Outras deverão ocorrer na próxima semana.
El País
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