Menores ex-internos relatam experiências e opinam sobre redução da maioridade penal
Com votação aguardada na Câmara para esta terça-feira, a proposta de redução da maioridade penal está no centro das discussões no país e continua dividindo opiniões. Mas o que pensam jovens que cometeram atos infracionais na adolescência e passaram pelas instituições de internação?
A BBC Brasil ouviu os relatos de quatro adultos que conseguiram prosseguir com suas vidas após incursões pelo mundo do crime, seja por tráfico de drogas, formação de quadrilha, roubo de cargas ou roubo de carros. Alguns passaram por períodos de internação na antiga Febem e na atual Fundação Casa, em São Paulo, e outros pelo Degase, no Rio de Janeiro.
Eles relatam suas experiências e argumentam sobre a redução da maioridade penal.
Veja os principais trechos dos depoimentos abaixo:
Odilon José da Silva
Eu roubava cargas e estabelecimentos comerciais. Lojas, galerias, supermercados. Sem crimes violentos, nem agressões às pessoas, nada disso. Eram crimes contra o patrimônio mesmo. O que me levou ao crime? Descobri que tinha sido adotado aos 13 anos, quando meu pai, bêbado, disse que não deveria ter me tirado da lata de lixo e me jogou na rua porque eu tinha pego dinheiro dele escondido. Fiquei dos 13 aos 16 anos na rua, perambulando, e também passei por favelas, pensões. No começo eu roubava comida no supermercado, mas, quando eu fiz 15 anos, meu pai morreu e minha mãe me chamou de volta para casa – mas eu já estava nas drogas, no crack, cocaína, cola, e fiquei na rua.
Acabou que minha mãe perdeu tudo, e uns meses depois estávamos eu, ela e meu irmão à deriva, em casas de parentes. Eu vi que precisava arranjar dinheiro de algum lugar, antes que eles começassem a passar pelo que eu tinha passado na rua. Tínhamos dívidas, e precisávamos viver. Procurei uma quadrilha numa periferia de São Paulo, e no começo eles acharam estranho, mas checaram tudo e viram que eu estava falando a verdade. Eu queria mesmo entrar para ganhar dinheiro.
Em nove meses roubando carga pude pagar aluguel, comprar padaria e pizzaria junto com outros, e ficamos muito bem. Mas um dos menores da quadrilha me delatou, e acabei indo parar na Febem, e cumpri um ano e seis meses de internação. Nessa época, minha mãe foi despejada, perdeu tudo de novo, foi uma grande confusão. Olha, o que eu vivi na Febem está gravado na minha alma para sempre, mas o tempo encarcerado me fez ver que eu não queria o crime, só não sabia por onde procurar outras opções.
Quando eu saí, fui cumprir liberdade assistida na Pastoral do Menor, e aí minha vida realmente mudou. Fiz estágios, estudei, e anos depois me formei em Direito. Hoje sou advogado e já trabalhei em órgãos públicos, mas quero advogar mesmo. Sou totalmente contra a redução da maioridade penal. O Estado brasileiro não tem condições para isso, jamais. Há setores da sociedade engajados em convencer que os menores ficam impunes no Brasil. Isso não é verdade. Deveriam aumentar a pena de internação para homicídio, latrocínio, estupro, claro. Mas há punição e há ressocialização, sim, eu sou prova viva disso.
Odilon José da Silva tem 34 anos e foi internado por roubo de cargas e lojas aos 17 anos
Michelle Felix
Nasci em Fortaleza, no Ceará, mas cresci no Rio, na Rocinha. Minha mãe tinha problemas psiquiátricos, e deixava eu e meus irmãos trancados em casa o dia todo. Quando eu tinha 13 anos ela colocou fogo na casa, e eu e meus dois irmãos acabamos sendo criados por parentes. Com 17 anos eu trabalhava num hotel e fazia crochê para sobreviver. Tinha três empregos e queria uma vida melhor, mas fui me aproximando de más influências. Fui para São Paulo e na volta um amigo, maior de idade, colocou drogas na minha mochila quando a polícia fez uma batida. Ele me convenceu de que eu pegaria só um mês, por ser menor, mas acabei cumprindo um ano e três meses de internação, seis meses de semiliberdade e seis meses de liberdade assistida, o início na Fundação Casa, em São Paulo, e a maior parte no Degase da Ilha do Governador, no Rio, por tráfico de drogas.
Foi difícil. Em São Paulo as meninas apanhavam muito, embora a infraestrutura fosse melhor. Quis sair logo de lá. No Rio as coisas eram mais precárias, mas os funcionários nos tratavam melhor. Passar pelo sistema me ajudou a ser quem eu sou hoje. Estou casada com outro ex-interno, trabalhando, e grávida de oito meses. Trabalho na TV Degase, um projeto de ressocialização dos internos através de oficinas de audiovisual. Consegui ajudar minha mãe, que agora faz tratamento e está bem. Meu sonho é fazer faculdade de jornalismo. Meu ato ocorreu oito meses antes de eu fazer 18 anos. Nem sei quantos anos eu teria ficado na cadeia em Bangu se já fosse maior. Não sei como teria sido minha vida.
Sou totalmente contra a redução da maioridade penal. Acho que a internação pode, sim, ressocializar e recuperar o adolescente, sobretudo se ele sair com um emprego e se não voltar para o lugar onde morava, para os amigos e a estrutura de vida anterior. Tem que haver um outro futuro, um recomeço. Também vai do esforço de cada um. No meu tempo de semiliberdade, eu aprendi a fazer unha num curso dentro do Degase. Saía, fazia unha na favela e voltava para dormir.
Reduzir (a maioridade) é só uma maquiagem, não vai resolver nada. É um erro jogar esses jovens na verdadeira “escola do crime” que são os presídios, aí sim não tem chance nenhuma de uma nova vida. Mas sou a favor de aumentar a pena de internação em casos graves, de assassinato, latrocínio, estupro. Também não acho justo um adolescente matar a mãe, como acontece tanto aqui, e ficar no máximo três anos. Entendo que a sociedade cobre justiça em casos assim, e acho que estão certos mesmo.
Michelle Feliz tem 23 anos e foi internada por tráfico de drogas aos 17 anos
José Carlos de Souza dos Santos
Comecei com 15 anos no mundo do crime, com uma quadrilha de roubo de carros na Ilha do Governador, no Rio. Pegava carro em Bonsucesso, Barra, vários bairros. No meu “bonde” só tinha menores. Naquela época, eu era maluco, achava que tinha uma visão de mundo. Já estava bem acostumado, mas um dia fui preso e vim para o Degase. Primeiro tive uma passagem de seis meses, depois fugi e cumpri mais 47 dias. Hoje em dia, botando na ponta do lápis, vejo que ganhar R$ 10 mil com o crime não compensa, depois você ainda faz dívida com advogado.
Quando a gente sai, percebe que a vida continuou para quem ficou lá fora, mas para quem está preso o tempo para. É ruim. Hoje eu vejo que minha mente era fechada, e apesar de tudo, esse tempo internado me mostrou outro caminho. O ser humano é falho, né, erra. Às vezes a gente precisa passar por algumas coisas para enxergar o caminho certo. Hoje em dia eu tenho 27 anos, tenho uma filha de cinco anos, e nunca mais tive passagem, nem por briga. Trabalhei e juntei dinheiro por quatro anos para comprar equipamento e montei um canal no YouTube, “Do Morro para o Mundo”. É disso que eu gosto. Câmera, falar, me expressar, mostrar essa realidade. Sempre gostei de cinema, teatro, TV e estou tentando trabalhar com filmagens.
Na minha opinião, reduzir a maioridade seria como pegar um garoto com um 38 na mão e ensiná-lo a usar fuzil. Se eu tivesse ido para a cadeia de maior, de duas uma: ou teria voltado a roubar ainda mais, ou já estaria morto, com certeza. Acho que seria uma confusão total se houvesse a redução. Na cadeia, já te dão várias dicas logo de começo. “Esquece redes sociais, nada de carrão para não levantar suspeita, esquece celular”. São contatos, técnicas, pessoas com quem você tem que se associar, agradar. O país tinha que pensar no que está fazendo com esses jovens de favela antes de decidir reduzir. Seria um grande erro. Hoje eu vejo que é possível ter mais sem perder tudo.
José Carlos de Souza dos Santos tem 27 anos e foi internado por formação de quadrilha e roubo de carros aos 15 anos
F.L.*
Eu roubava carros em São Paulo, em diversos bairros. Depois de um tempo fui preso e cumpri quatro medidas socioeducativas ainda na antiga Febem, quando tinha 14 anos, num total de três anos internado. Foi terrível. Havia maus-tratos, rebeliões, muita violência. Os agentes abusavam, agrediam mesmo, havia muita fuga dos adolescentes. Eu mesmo apanhei demais. Foi traumatizante, não vou esconder, mas me fez mudar. Não voltei pro mundo do crime quando saí, e isso se deve muito ao fato de ter terminado meus estudos na Febem e ao apoio que eu tive da minha família.
Hoje estou fazendo faculdade de Direito, com bolsa do ProUni. Fui bem na prova do Enem e consegui, me esforcei. Me formo no final do ano e meu objetivo é tirar a OAB e advogar mesmo. O motivo da minha entrada no crime foi conseguir mais dinheiro. Não passava necessidade, e não tinha envolvimento com drogas. Eu queria ter as coisas, poder comprar as coisas. Fiquei alienado. Quando tive meu primeiro emprego, com 18 anos, um outro mundo se abriu.
Eu acho que a redução da maioridade penal é um grave erro. Por mais problemas que as instituições de internação de menores tenham, ali você estuda, tem cursos, tem uma chance. Na cadeia não tem nem espaço, nem higiene. O sistema carcerário não oferece nenhuma chance de recuperação. Se reduzirem, seis meses depois vamos ver um aumento brutal da criminalidade, pode apostar. Também sou contra aumentar o tempo de internação de menores por crimes hediondos. As pessoas não se dão conta de que o tráfico de drogas é crime hediondo, e responsável por 70% das internações de menores. Sou a favor de aumentar o tempo de internação só em crimes como homicídio, latrocínio e estupro e desde que se crie uma fiscalização maior dos abusos dentro dessas unidades e que se invista muito mais nelas.
F. L. tem 25 anos e foi internado por roubo de carros aos 14 anos
*Iniciais de ex-menor que não quis se identificar
Com BBC Brasil
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