Publicado em: 23 abr 2015

Governo pagou irregularmente R$ 19,5 milhões do Bolsa Pesca

Em um ano e meio, o governo federal fez pagamentos irregulares de mais de R$ 19 milhões através do seguro-defeso, o chamado Bolsa Pesca. Foram pagamentos, por exemplo, a funcionários públicos, a quem tinha outras fontes de renda além da pesca, e até a mortos. Resultado de uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) analisada pelo plenário do tribunal no último dia 8 de abril, o dado é relativo a parcelas do seguro-defeso pagas entre janeiro de 2012 e junho de 2013, período em que Marcelo Crivella (PRB-RJ) era ministro da Pesca.

Do total de 30,2 mil parcelas que representaram R$ 19.586.768 repassados irregularmente, 19 mil parcelas, o equivalente a R$ 12,4 milhões, foram para quem tinha registro de emprego formal – o que não é permitido aos beneficiários do seguro, que deve ser pago a pescadores artesanais durante o período do defeso, em que a pesca de determinadas espécies é proibida.

Cerca de um terço das pessoas que, mesmo no mercado formal de trabalho, eram beneficiários do seguro-defeso recebia remuneração da administração pública, a maioria de prefeituras, segundo o TCU. Além disso, 373 parcelas foram pagas a mortos. Outras 7,5 mil parcelas foram para quem recebia benefícios previdenciários que não podem ser acumulados com o Bolsa Pesca; e outras 318 parcelas, a quem recebia remuneração da administração federal.

Outra fraude descoberta foi a existência de 46,8 mil registros de pescadores com CPF irregular – com a possibilidade até de criação de CPFs para obtenção do Bolsa Pesca. E há também casos de parcelas do seguro pagas fora do período do defeso; de ausência de registros sobre embarcações utilizadas pelos beneficiários; e parcelas pagas a menores de 18 anos, outra proibição da legislação sobre o seguro.

A auditoria do TCU foi iniciada em julho de 2013 — pouco mais de um mês após O GLOBO ter revelado denúncias de cooptação da Confederação Nacional de Pescadores e Aquicultores (CNPA) e das superintendências estaduais do Ministério da Pesca pelo PRB, partido do então ministro da Pesca, Marcelo Crivella. Reportagens do GLOBO também já haviam mostrado casos de fraudes tanto no registro de pescador (concedido pelo Ministério da Pesca e requisito para recebimento do Bolsa Pesca) quanto no pagamento do benefício (feito pelo Ministério do Trabalho), com pagamentos a quem não era pescador em vários estados brasileiros.

COMPARAÇÃO COM DADOS DA RECEITA E DO INSS

Os auditores do tribunal verificaram os controles internos do Ministério do Trabalho no repasse do benefício, ”incluindo as bases de dados e os batimentos realizados para a sua concessão”, diz o texto votado no último dia 8. Além de informações da pasta do Trabalho, o acórdão, relatado pelo ministro Augusto Sherman, analisou dados do Ministério da Pesca, do INSS, da Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social) e da Receita Federal. O TCU cruzou os registros de pescadores e a lista de beneficiários do Bolsa Pesca com cadastros como o CPF (Cadastro Nacional de Pessoa Física), a Rais (Relação Anual de Informações Sociais, o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados), o Sisobi (Sistema Informatizado de Controle de Óbitos) e o Siape (Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos).

No caso dos cruzamentos feitos, por exemplo, para se verificar se havia pessoas acumulando o recebimento do Bolsa Pesca com empregos formais, ”34,4% do total (dos vínculos detectados na Rais de beneficiários do seguro-defeso) são pertencentes à administração pública. Destes cargos e empregos, 81,9% referem-se ao Poder Executivo municipal. Portanto, no cruzamento realizado destacou-se a participação das prefeituras como grandes empregadoras de beneficiários do SDPA (seguro-defeso)”, afirma o texto votado pelo plenário do TCU.

O tribunal alerta que não foram considerados os empregos informais. Se os registros do benefício pudessem ser comparados com quem tem renda a partir de trabalho informal, o volume de irregularidades detectadas poderia ser bem maior: ”há indícios de que vários beneficiários exercem outra atividade diversa da pesca, porém não estão no mercado formal, logo, não constam nas bases de dados governamentais”.

Já em relação aos casos de pagamentos irregulares a servidores federais e a mortos, o tribunal aponta que a causa é o fato de simplesmente não ser feito cruzamento dos registros do benefício nem com o Siape, sistema com informações sobre servidores públicos; nem com o Sisobi, sistema de controle de óbitos. Também foram constatados ”9.005 requerimentos (do seguro-defeso) com data de entrada anterior a 30 dias ou posterior 180 dias do início do defeso; e 44.041 requerimentos que foram cadastrados depois de 40 dias do término do defeso”.

Os auditores do TCU descobriram, ainda, que o sistema do seguro-defeso de cadastramento de informações não permite que sejam incluídos dados das embarcações dos pescadores beneficiários, ”pois esse módulo não foi implementado pela Dataprev”, apesar de essa ser uma informação pedida no requerimento do seguro. O sistema de cadastramento do Bolsa Pesca também não inclui registro do local de arquivamento do processo físico do benefício — o que leva, diz o TCU, a ”dificuldade ou impossibilidade de resgatar em momento futuro a documentação apresentada”.

INDÍCIOS DE FRAUDES COM CPFs

Quando foi feita a comparação dos dados do seguro-defeso e do registro de pescador com o CPF, ”constataram-se 14.151 requerimentos da base SDPA (seguro-defeso), 46.837 registros gerais da atividade pesqueira (RGP) e 1.646 cadastros de proprietários de embarcação com CPFs em situação não regular na base da Receita”.

Além disso, apenas nos registros de pescadores, foram achados 7.992 registros com o nome da mãe em branco; 6.227 registros sem a data de nascimento do pescador, e 870 registros com o número de identificação do pescador duplicados. Entre aqueles com registro de pescador que possuem CPF irregular, o TCU ressalta haver ”quantidade expressiva de registros com nomes diferentes entre a base do RGP e da RFB (Receita Federal), sugerindo que pessoas diversas utilizam o mesmo CPF. Isso seria um indício de fraude, em que o indivíduo se utiliza de CPF alheio para retirar o RGP (registro de pescador) e, em seguida, solicitar o benefício do seguro”. Segundo o tribunal, mais do que o uso indevido do CPF, há a possibilidade até de ”criação de CPFs para o recebimento indevido do benefício”.

Nos estados que mais pagam o Bolsa Pesca — Pará, Maranhão, Bahia e Amazonas –, o tribunal aponta um quadro de falta de fiscalizações. Além disso, o TCU sublinha que, nas reuniões realizadas pelos auditores com a Pesca, o Trabalho e outros órgãos públicos, ”foi citado um esforço conjunto (…) para tratar do significativo aumento do SDPA (o seguro-defeso) nos últimos anos. Criou-se no final de 2011 um grupo interministerial envolvendo MTE (Trabalho), MPA (Pesca), MMA (Meio Ambiente), MPS (Previdência) e CGU (Controladoria-Geral da União). (…) Entretanto, segundo relatos obtidos por esta equipe de auditoria, o trabalho não teve continuidade”.

Além de fazer determinações aos ministérios do Trabalho e da Pesca, o tribunal encaminhou os resultados da auditoria ao Ministério Público Federal e aos Ministérios Públicos estaduais do Pará, do Maranhão, da Bahia e do Amazonas.

MINISTÉRIO DO TRABALHO VAI ANALISAR CADA CASO

Procurado, o Ministério do Trabalhou afirmou, por meio da assessoria de imprensa, que os indícios de fraudes ”decorrem, em alguns aspectos, de fatores externos ao sistema do seguro, que se utiliza de cruzamento de dados com outras bases de governos”. Segundo a pasta, um desses ”fatores externos” seria o fato de que ”no momento do cruzamento a informação não se encontrava na base de dados pesquisada”. Outro motivo, diz o ministério, seria que ”o cruzamento pelo TCU trouxe novas bases de dados, das quais o MTE não dispõe, caso de base do TSE de candidatos a eleições”. Além disso, a pasta afirmou que houve ”problemas detectados nas próprias bases pesquisadas; por exemplo, informação inverídica de pessoas mortas”.

”Todas as situações apontadas refletem indícios de pagamentos indevidos e exigem análise individual de cada um dos casos apontados”, sublinhou o Ministério do Trabalho, destacando, ainda, a adoção de abertura de processos administrativos quando detectada a irregularidade. ”Cabe destacar que o volume detectado de indícios de pagamentos indevidos representa 0,005% do montante destinado ao benefício anualmente e que o MTE vem aprimorando seu sistema de batimento de dados para evitar que esses indícios ocorram”, completou a assessoria.

O Ministério da Pesca, também questionado, ressaltou que este ano foram modificadas as regras para concessão do registro de pescador, requisito para obtenção do seguro-defeso. Segundo a assessoria de imprensa da pasta, por meio do decreto 8.425, de 31 de março deste ano, passou a ser feita uma classificação dos pescadores no momento em que eles são registrados: se são pescadores apenas eventuais, encaixando-se numa categoria subsidiária; se são pescadores ”principais”, ou seja, se têm a pesca como principal fonte de renda, mas também possuem outras fontes; ou se são pescadores exclusivos, que vivem apenas da pesca. De acordo com a assessoria, apenas aqueles com registro de pescador exclusivo podem requerer o seguro-defeso a partir de agora. No caso de pescadores que já possuem o registro, quando eles forem fazer a atualização cadastral (no dia do aniversário do pescador), serão classificados de acordo com as novas categorias, afirmou a assessoria.

O registro de pescador continuará a ser autodeclaratório, isto é, baseado na declaração da pessoa de que ela pesca, com a exigência apenas de duas testemunhas, normalmente uma delas sendo o presidente da colônia, do sindicato ou da federação de pesca de que o pescador faz parte. No entanto, segundo o ministério, haverá uma mudança nesse controle da concessão do registro a partir da publicação, em meados de maio, da regulamentação do decreto 8.425. Segundo a assessoria da pasta, essa regulamentação vai determinar que, no caso de fraude — ou seja, no caso de pessoas que se declarem pescadores sem ser –, a responsabilidade civil e criminal pela fraude passará a ser não apenas do pescador, mas também das duas testemunhas do caso.

Ainda segundo a assessoria da Pesca, foi retomada a substituição das carteiras de pescador por carteiras com tecnologia QRCode, para evitar falsificações; essa substituição havia sido iniciada na gestão anterior, mas atingindo percentual muito baixo de pescadores.

Portal do Litoral PB

Com O Globo



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