Como os personagens gays no cinema evoluíram e de exceção passaram a ser regra
A homossexualidade no cinema é quase tão antiga quanto o próprio cinema. Já em 1895 o diretor americano Thomas Edison rodou o curta “The Gay Brothers”, em que dois homens dançavam juntos uma valsa ao som de um violino. O primeiro beijo entre dois homens foi registrado em “Asas” (1927), que venceu a primeira edição do prêmio Oscar na categoria de melhor filme, e insinuações e alegorias gays estão presentes em produções diversas como “A Alegre Divorciada” (1934), com Fred Astaire e Ginger Rogers, e o curta “Behind the Screen”, de Charles Chaplin.
No entanto, o cinema da época enxergava o homossexual como uma figura anedótica. O registro dominante era o da comédia. Com o advento do código de Hayes em meados dos anos 30, documento que restringia o que poderia ser visto nas telas de cinema e excluía beijos de língua, cenas de sexo, sedução, estupro, aborto, prostituição, nudez, obscenidade e profanação, a liberdade artística foi posta severamente em risco nos Estados Unidos.
O homossexual foi muito afetado pela estupidez do código de Hayes, já que finais trágicos ou a vilania eram destinados a personagens com “tendências homossexuais”. Em “Festim Diabólico” (1948), obra-prima de Alfred Hitchcock, a dupla de assassinos que move a trama é carregada de desejo homoerótico. Já em “Gata em Teto de Zinco Quente” (1958), de Richard Brooks, Elizabeth Taylor faz a esposa de um jogador (Paul Newman) frustrado e alcoólatra. A tendência homossexual do personagem é muito sutilmente sugerida.
´”Farrapo humano” (1945), de Billy Wilder, seria um filme sobre um escritor alcoólatra e sexualmente confuso, mas graças à censura acabou virando um filme sobre um escritor alcoólatra com bloqueio criativo. O próprio Billy Wilder deu um jeito de driblar a censura uma década mais tarde em “Quanto mais quente melhor” (1959). No filme estrelado por Marilyn Monroe, Tony Curtis e Jack Lemmon, não só a homossexualidade é abordada como o travestismo também. Wilder se vale do humor, não para produzir efeito cômico, mas como um subterfúgio narrativo para falar abertamente, na medida do possível, sobre homossexualidade.
Mudanças no cinema refletem mudanças sociais
Hoje, o cenário é diferente. Mas não muito. “Para mim melhorou. O homossexual era visto de maneira caricata. Filmes como ‘Gaiola das Loucas’ (1996) e ‘Priscilla – a rainha do deserto’ (1994) eram representativos de uma fatia da comunidade. Ela existe e é fundamental que seja retratada, mas somos muito mais diversos do que comédias sugerem”, observa André Sobreiro, editor do site Salada de Cinema. “Hoje, os filmes já conseguem retratar essa diversidade de maneira mais completa, com filmes dramáticos, mais delicados e mais próximos dessa variedade. Isso, claro, é reflexo dos avanços que a comunidade fez em termos de aceitação.”
Para o cinéfilo Heitor Machado, essa mudança ainda não é tão sintomática. “É inegável que nos últimos anos aumentou o número de títulos que abordam o tema; mas é sempre de um jeito ou de outro – ou mostra a descoberta da sexualidade, ou as dificuldades enfrentadas, a relação com a família, etc”.
Machado, que aponta “Direito de amar” (2009), de Tom Ford, como um filme que sintetiza o avanço da abordagem da homossexualidade no cinema, acha que o universo homossexual não é suficientemente navegado pela sétima arte. Na avaliação dele, o cinema europeu é o exemplo a ser seguido em matéria de cinema LGBT. “Há bons filmes da Holanda, Alemanha, França e, claro, Espanha, país de origem do Pedro Almodóvar, que sempre trabalhou com temáticas ligadas ao mundo gay”.
É mais ou menos essa a percepção do cineasta Hilton Lacerda, responsável pelo intenso “Tatuagem” (2013), que mostra o romance entre um soldado reprimido e de família extremamente religiosa e o diretor de uma trupe teatral em plena ditadura militar. À época do lançamento do filme nos cinemas, Lacerda disse que a relação homoafetiva tinha como objetivo ampliar o debate intrínseco à obra sobre liberdade. “Interessa-me corromper o eixo do olhar em relação a questões da sexualidade, do pós-gênero.”
Cinema para homofóbico
“Praia do futuro”, lançamento de 2014 do diretor Karim Ainouz, faz parte dessa nova onda do cinema brasileiro que está saindo do armário. André Sobreiro acrescenta “Hoje Eu “Quero Voltar Sozinho” a essa delicada equação, sobre a descoberta da sexualidade por um garoto deficiente visual.
“Eu tendo a ser um otimista. Acho que existem sim muitos homofóbicos por aí por falta de exposição ao tema. Vivem em um mundo fechado, em que ser gay ou lésbica é errado e onde as pessoas reprimem ou são reprimidas”, defende. “Daí surge um filme que conta uma história com personagens cativantes, um final encantador e, o mais importante, com situações com que as pessoas se identificam, sejam gays ou héteros. O filme falou de dramas da adolescência de um modo universal. Mas encaixou em um gay e deficiente visual. Isso acaba gerando, mesmo que de modo inconsciente, uma identificação do espectador com a personagem. E, aos poucos, torna a figura do gay mais natural”.
“ O cinema sairá do armário quando um filme com beijo gay for chamado de um filme com beijo.” (Heitor Machado)
Machado é mais cético. Para ele, “O cinema sairá do armário quando um filme com beijo gay for chamado de um filme com beijo”. Essa conquista pode passar pelo sexo. São justamente as cenas de sexo que tornam possível quantificar e qualificar o tamanho da evolução da abordagem da homossexualidade no cinema. Das ousadas cenas de sexo de “Azul é a cor mais quente” à entrega de Wagner Moura ao tesão aflorado da relação de seu personagem com um alemão em “Praia do Futuro”, o cinema tem se permitido experimentar. “Contar uma história assim, sem exibir a intensidade do sexo e da conexão, não seria possível”, observa Machado.
Não é possível falar de evolução da temática gay no cinema sem mencionar “O segredo de Brokeback Mountain”. Lista recente formulada pelo site especializado em cinema independente IndieWire colocou o filme dirigido por Ang Lee no topo, a partir dos votos de seus leitores. “O filme contou uma história triste, mas ao mesmo tempo encantadora sobre amor; e que calhou de ter a barreira social de ser gay”, salienta o editor do Salada de Cinema. Para ele, “O filme fez em 2005 o que ‘Praia do Futuro’ fez agora pelo nosso cinema”. Sem máscaras.
“ ‘Hoje eu Quero Voltar Sozinho’, ‘Brokeback Mountain’ e ‘Gaiola das Loucas, cada um em seu momento, me ajudou a entender o que é ser gay, me aceitar e me valorizar”. (André Sobreiro)
“O sexo está lá, e seres humanos fazem sexo; o amor está lá; as barreiras sociais estão lá. É uma história de amor completa, só que com dois homens que, para ajudar, são dois atores reconhecidos e queridos”.
Sobreiro observa que diversidade é a palavra da vez no cinema. “’Hoje eu Quero Voltar Sozinho’, ‘Brokeback Mountain’ e ‘Gaiola das Loucas’, cada um em seu momento, me ajudou a entender o que é ser gay, me aceitar e me valorizar”.
IG
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