Babilônia: três casais contam como é ser ‘Estela e Teresa’ na vida real
A novela “Babilônia” trouxe à tona um tema pouco explorado na sociedade brasileira: a homossexualidade feminina na terceira idade. Logo no primeiro capítulo, o beijo das personagens Teresa e Estela, vividas pelas atrizes Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg, gerou milhares de comentários positivos e negativos nas redes sociais e até uma nota de repúdio dos deputados da Frente Parlamentar Evangélica.
Na vida real, idosas casadas com outras mulheres têm histórias parecidas com a de Teresa e Estela. Juntos há décadas, os três casais entrevistados pelo G1 enfrentaram o preconceito numa época em que o tabu era ainda maior, ajudaram a criar os filhos e netos de uma das parceiras e conseguiram fazer o amor resistir às pressões em qualquer relacionamento.
Elas dizem que gostaram de serem representadas pelo casal da novela, principalmente porque a trama aborda o tema com naturalidade. Conheça as histórias delas a seguir:
Casal espera o primeiro bisneto
A data está gravada nas alianças: 16 de outubro de 1998. Foi nesse dia que Maria Rita Lemos e Fulvia Margotti se conheceram em uma sala de bate-papo virtual na internet. “Procuro pessoa com curso superior e que fale outra língua para um papo inteligente”, escreveu a psicóloga Maria Rita, que morava em Limeira, no interior de SP, e estava se separando do segundo marido.
Formada em educação física e fluente em francês, Fulvia respondeu. Depois, o “papo inteligente” engatou e se transformou em uma amizade virtual. Convidada por Maria Rita para passar a virada de ano com sua família, ela saiu de Cuiabá, onde morava, para conhecer a amiga. “O ônibus parou na estrada e ela veio me buscar. Quando entrei no carro, ela encostou no meu braço ao passar a marcha. Aí a mágica aconteceu”, lembra Fulvia.
Alguns meses depois, ela terminou a relação de dez anos que tinha com outra mulher e se mudou para Limeira. Chegou de carro, após dirigir mais de 30 horas, levando apenas uma muda de roupa, um violão e seu computador. Alugou uma casa vizinha à de Maria Rita e esperou que ela terminasse o relacionamento para que as duas ficassem juntas. Hoje, aos 53 anos, Fulvia é professora de informática na cidade.
Maria Rita, que ficou viúva do primeiro marido e viveu 10 anos com o segundo, diz que nunca se interessou por mulheres antes de conhecer Fulvia. “Ela foi um divisor de águas na minha vida. Eu gostava de ser casada com homens, o sexo era bom, mas as coisas podem mudar. Não me rotulo”, afirma ela, que hoje tem 68 anos.
Segundo a psicóloga, a vida sexual até melhorou, “porque mulher conhece mais o corpo uma da outra”. Mas não é isso o que mais valoriza na sua relação com Fulvia. “O nosso companheirismo é muito grande. Ela largou tudo para ficar comigo. Vendeu o carro para me ajudar a pagar dívidas, faz tudo pelos meus filhos”, diz.
Maria Rita tem três filhos, além de uma neta que cria desde os dois anos de idade. Afirma que todos aceitaram bem a relação homossexual da mãe. Do mais novo, que na época tinha 12 anos, ouviu: “Mãe, você está feliz? É isso que importa”.
Há oito anos, o casal selou a união estável e há três, o casamento civil. A festa foi em um bar GLS. “Minha mãe levou pétalas de rosa, bexigas em forma de coração”, conta Fulvia. “Só ficou frustrada porque não encontrou duas noivinhas para o bolo”, completa, rindo.
“É muito linda a forma como nossa família nos acolheu. Pessoas que lutam contra a família, além de lutar contra a sociedade, sofrem muito”, completa Maria Rita.
Para elas, a batalha pelo reconhecimento da sociedade continua. De vez em quando passam por algum problema: um segurança que queria barrá-las na entrada de uma festa de aniversário, um delegado que discriminou Fulvia quando ela ajudou uma cunhada em um acidente de carro, o consultório de Maria Rita que perdeu pacientes depois que ela assumiu a relação.
“A sociedade não está preparada. As pessoas veem a aliança e perguntam: ‘Quem é seu marido?’ Ou então: ‘O que ela é para você?’ Respondo que ela é minha esposa. Nada como o espontâneo para desarmar as pessoas”, diz Fulvia.
Maria Rita também prefere a franqueza. “Muita gente inventa, apresenta a pessoa como amiga, sobrinha. Eu não queria isso. Por que viver na sombra?”, questiona.
As duas andam de mãos dadas na rua, no shopping, no centro espírita que frequentam. “Mas não ficamos nos esfregando. A gente não agride ninguém. Nisso sou careta até para héteros. Tem coisas que são íntimas do casal”, diz a psicóloga.
Para elas, as personagens lésbicas da novela “Babilônia” têm um papel “importantíssimo” por tratar com naturalidade desse tipo de relação. “São duas mulheres normais, como a gente. As atrizes passam credibilidade e respeito. As pessoas acham que a gente transa o dia inteiro, mas não é assim. A gente faz almoço, leva e busca criança, tem conta para pagar”, diz Maria Rita.
Ela agora está tricotando um casaquinho para o bebê da neta Paloma, que está grávida de três meses. “Vamos ser bisavós!”, conta, orgulhosa.
Aposentadas largaram noivo e marido e hoje vivem juntas
Nicole, de 22 anos, adora apresentar para todo mundo Willman Defacio e Angela Fontes como suas “duas avós”. Willman tem 67 anos e mora há quase duas décadas com Angela, de 63. “A Nicole tem prazer de contar para as pessoas que tem duas avós. Quando era criança queria que fôssemos nos passeios da escola”, conta Willman, avó de fato da jovem e quem a cria desde os 13.
Auxiliares de enfermagem aposentadas, Willman e Angela se conheceram quando trabalhavam no mesmo hospital. “Eu já olhava para ela com outros olhos, mas ficamos dez anos sem nos ver. Até que marcamos um encontro e estamos juntas até hoje”, relata Angela.
Ela conta que seu primeiro relacionamento homossexual foi aos 23 anos. Na época, ia se casar com um namorado, mas se interessou por uma amiga dele e terminou o noivado. Ficou com a moça por 15 anos, até que se apaixonou por Willman e a deixou.
Já a companheira foi casada por 19 anos com um homem, com quem teve duas filhas. Mas o casamento era “um fracasso”. “Ele bebia demais, me batia. Eu trabalhava em dois empregos e o tempo que ficava em casa era brigando”, lembra. Depois que teve um romance com uma colega de trabalho, Willman criou coragem para terminar sua relação.
Hoje, Angela e Willman moram com a neta em um apartamento em São Paulo. As duas famílias apoiam a relação. “Foi muito natural. Minhas filhas adoram ela e meus pais também aceitaram numa boa”, diz Willman.
Segundo Angela, seus familiares sempre souberam que ela é homossexual sem que ela precisasse dizer declaradamente. “As pessoas nem têm como falar nada. Faço das tripas o coração para cuidar da minha mãe idosa, cuidei da minha irmã antes de ela falecer. Sempre trabalhamos, nunca tivemos nada que nos desabonasse. Não temos que dar satisfação”, diz.
Nem sempre foi assim. Sua primeira namorada pedia que ela escondesse a relação e elas fingiam que não se conheciam, ainda que trabalhassem no mesmo lugar. Para Angela, o preconceito diminuiu muito de alguns anos para cá. “Hoje você passa na rua Frei Caneca e vê duas meninas se beijando. Na nossa época, pelo amor de Deus, se alguém desconfiasse já era um falatório”, diz.
Em sua opinião, a maior conquista para os gays no Brasil foi o casamento civil. “Quando eu morava com a outra menina, a gente não podia comprar nada juntas. Ajudei a pagar o apartamento, os móveis. Fiquei sem nada”, comenta.
Ela pretende oficializar a união com Willman no próximo mês. Diz que quer fazer isso há muito tempo, mas estava adiando porque queria uma festa. “Queria convidar todo mundo. Temos tantos amigos que nem saberíamos quem chamar para padrinhos. Mas o tempo está passando, então vou ao cartório resolver logo”, promete.
Para ela, o maior mérito da novela é retratar a homossexualidade na terceira idade. “Quase não se vê idosos em cima dos caminhões das paradas gays, por exemplo. Eu adoro. Já fui, com meu cabelo branco e tudo”, afirma.
A dupla tem uma casa na praia e outra no interior e viaja com frequência. “A gente combina em tudo. Adoramos sair, passear. Quase nunca brigamos”, diz Willman.
“Eu não consigo ficar sem ela”, declara-se Angela. E vira-se para a companheira. “Vamos ficar juntas até morrer. Não é, amor?”
Médica e engenheira enfrentaram preconceito no bairro
A médica Maria de Fátima Marques Silva, 61, e a engenheira civil Ester Costa Machado, 56, dividem até o guarda-roupa: na casa onde moram em Florianópolis, as peças do closet são usadas pelas duas.
Juntas há mais de três décadas, elas compartilharam também a criação de Mel, filha biológica de Fátima, que hoje tem 30 anos e já não mora com as duas mães desde que se casou.
O pai de Mel é um ex-namorado de Fátima, a quem ela recorreu quando decidiu que queria ter um filho. “Fui namorada dele muito tempo e depois nos separamos. Para engravidar, eu precisava de um parceiro e o escolhi”, conta.
Os três são muito amigos. Tanto que Fátima e Ester, que moravam em Porto Alegre, mudaram-se para Florianópolis quando Mel era pequena, para que ela pudesse crescer perto do pai. Os quatro moraram na mesma casa durante 13 anos. Hoje, após se casar, ele vive no mesmo terreno que elas, com a esposa e os filhos. “A Mel fala que é privilegiada porque tem duas mães, um pai e uma boadrastra [’madrastra boa’]”, conta Fátima.
Quando mais jovens, Fátima e Ester namoravam tanto homens quanto mulheres. Dizem que eram “do amor, não importava o sexo da pessoa”. Elas se viram pela primeira vez no posto de gasolina da familia de Ester, quando tinham 25 e 30 anos de idade. “A gente se olhou e acendeu uma luzinha, tocou um sininho”, brinca a médica.
Mas só foram ficar juntas anos depois. A família de Ester nunca aceitou. A mãe e o irmão tinham “horror” à história, conta. “Mas eu sabia o que queria. Pensava: ‘Achei a minha pessoa. Não sei como vai ser, mas um dia vamos ficar juntas”, conta a engenheira.
Fátima também enfrentou algumas discordâncias, mas diz que sua profissão a ajudou a ser aceita. “Eu era a médica da família, cuidava de alguns. As pessoas pensam: ‘Ela é homossexual, mas é doutora’, diz.
No bairro onde moram, o casal se engajou em trabalhos comunitários e, aos poucos, conseguiu o respeito dos vizinhos. No início, os pais das crianças proibiam os filhos de passar em frente à casa das duas. “Devagarinho, com muito amor e carinho, sem revidar, a gente se impôs como ser humano”, diz Fátima.
Segundo Ester, as pessoas viram que elas são “absolutamente normais”. “Não tem promiscuidade na nossa relação. A gente não briga, criou bem nossa filha. Hoje nossa casa parece que tem um ímã. Está sempre cheia de gente”, afirma.
Há dois anos, a união do casal foi oficializada com uma festa de casamento para 170 pessoas no dia do aniversário de 60 anos de Fátima. Os sobrinhos foram padrinhos e a filha entrou de braços dados com as noivas, que levavam buquês de flores do campo e orquídeas. “Todo mundo chorou de emoção”, lembra Ester.
“Foi uma bela cerimônia para celebrar o nosso amor. ”
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