Filme ‘Dorivando saravá’ conjuga Caymmi como verbo e sujeito criador de cancioneiro negro
♪ Na gramática do filme Dorivando saravá – O preto que virou mar, Dorival Caymmi (30 de abril de 1914 – 16 de agosto de 2008) é verbo literalmente conjugado por Adriana Calcanhotto, BNegão, Moraes Moreira (1947, 2020) e Tom Zé, entre outros artistas entrevistados para o documentário dirigido e roteirizado pelo cineasta Henrique Dantas.
“Avatar da música brasileira” no entendimento de BNegão, rapper cujo currículo inclui show com o cancioneiro do compositor baiano, Caymmi é verbo que – como ressalta o tincoã Mateus Aleluia em depoimento para o filme – significa estar impregnado dos cheiros e do estado de espírito da Bahia, terra natal do autor de canções praieiras e sambas buliçosos que ainda alimentam aura mítica em torno do estado mais negro do Brasil.
Contudo, o foco primordial de Dorivando savará reside sobre o sujeito Caymmi, criador de obra banhada pelas águas africanas da negritude. Coroado Obá de Xangô no candomblé, Caymmi tem a obra analisada – sem academicismos – neste documentário que estreou em novembro de 2019 e que, após rodar o circuito de festivais durante um ano, chega ao Canal Curta! em exibição programada para 16 de novembro.
As reflexões sobre a obra de Caymmi – compositor cuja obra sempre (re)tratou a mulher negra com delicadeza, como ressalta Jussara Silveira, cantora que lançou em 1998 disco com o cancioneiro de Dorival – são entremeadas com deliciosas histórias sobre o lendário artista.
Uma delas é sobre a noite em que Caymmi pagou “uma rodada de bíblia” para os companheiros de boemia com o intuito de ajudar um homem que vendia bíblias na rua. Outra, contada pelo produtor musical Roberto Santana, diz respeito à criativa desculpa dada por Caymmi à mulher Stella Maris (1922 – 2008) quando chegou em casa, após fim de semana na farra, para justificar a mancha de batom na camisa. “Stella, já pedi a Fernando Lobo para parar com essa brincadeira de ficar me beijando”, teria dito Caymmi, maroto, para o riso da esposa e a imediata absolvição.
Quarto documentário sobre o artista, Dorivando saravá difere do recente Dorival Caymmi – Um homem de afetos (2019), de Daniela Broitman, por fazer abordagem mais mítica do cancioneiro do compositor. Embora os saborosos causos inseridos no roteiro deem dimensão humana ao criador de músicas lapidares, Dorivando saravá procura eternizar o homem através da obra sagrada.
Caymmi é personificado como o preto que virou mar, como diz o subtítulo desse filme por vezes sensorial, editado sem pressa, com tempos que até poderão ser considerado “mortos” por quem vive em ritmo industrial, mas que ajudam a entrar no clima zen do sujeito criador.
A propósito da noção de tempo, uma das passagens mais interessantes do roteiro é a discussão sobre a associação da preguiça ao baiano, efeito de racismo ainda entranhado na sociedade do Brasil.
O racismo, aliás, entra em foco sem diluir a aura mitológica com qual o filme envolve Caymmi ao pôr a obra do artista no centro da discussão. “O debate sobre raça no Brasil tem mudado. Resgatar Caymmi como uma figura negra é reflexo dessas discussões contemporâneas”, contextualiza o pesquisador Kleber Amâncio.
Em tempo todo próprio, o documentário Dorivando saravá exibe imagens que parecem pinturas, para as quais as interpretações de músicas como A jangada voltou só – canção praieira (de 1941, e não de 1943, como creditado erroneamente na tela) ouvida na voz serena de Lucas Santtana – soam como trilhas sonoras.
O caráter lendário da obra fica enfatizado no filme até quando o maestro Letieres Leite lembra que as imagens poéticas da letra de A lenda do Abaeté (1948), música sobre a Lagoa do Abaeté, assustava crianças como ele, Letieres.
Ao fim de Dorivando saravá, o filme reforça a impressão de que, ao morrer em 2008, Caymmi se eternizou como o Buda Nagô personificado na visão poética de Gilberto Gil em canção-homenagem de 1992 que compôs na Jamaica, como Gil conta no filme.
É como se o imortal baiano fosse o preto que realmente virou mar para emergir eternamente no imaginário (da parte) do Brasil que conjuga Dorival Caymmi, imerso nas águas africanas que banharam o cancioneiro matricial do compositor.
G1
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